55 anos depois, a quem interessa a gentrificação?

Em 1964, a socióloga Ruth Glass utilizou pela primeira vez o conceito Gentrificação para descrever as mudanças socioespaciais nos bairros proletários de Londres. Em palavras simples, a gentrificação ocorre quando um bairro se enriquece com a chegada de novos residentes ou negócios, mas essa riqueza não favorece os moradores originais, os quais são forçados a sair do setor por não poderem pagar o encarecimento do custo de vida. Na atualidade, existe um consenso de que a gentrificação é um problema planetário nas grandes cidades.

A gentrificação das metrópoles brasileiras pouco se relaciona com o estereótipo dos hipster de classe alta em cafés gourmet, ao contrário, ela tem mais a ver com a falta de moradia adequada, acessível e bem localizada para as classes populares. Na metrópole brasiliense, seu principal centro urbano (o Plano Piloto de Brasília – PPB), entre 1997 e 2013, concentrou 26,6% das transações imobiliárias formais. No DF (município polo), entre 2005 e 2010, o mercado imobiliário registrou uma alta média anual de 25% no valor do metro quadrado.

A história de Brasília é uma história de despossessão que hoje resulta em várias formas de desigualdade e injustiça dentro de seu território metropolitano. O bairro central da Asa Norte registra o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com 0,957, em contraste, o município de Padre Bernardo (Goiás), a 115 km de distância, tem um IDH de 0,651. No setor Noroeste, bairro construído há 10 anos que arrasou com o cerrado e com um santuário indígena, os preços por metro quadrado alcançaram em 2016 os mais caros do país e são mais de 7,5 vezes o valor encontrado em Valparaíso de Goiás, a 37 km.

Morar na capital federal tornou-se um privilégio. Com o centro expandido (PPB, SIA, Núcleo Bandeirantes, Guará e Águas Claras) enfrentando gentrificação quase generalizada, os investimentos imobiliários espalham-se pelo do DF, pressionando a população de menor renda a procurar moradia nos munícipios do Entorno. Desses municípios, Águas Lindas, Santo Antônio do Descoberto, Novo Gama e Valparaíso são os que mais receberam moradores vindos do DF, representando 65,7%, 45,5%, 42,5% e 40,3% da população migrante, respectivamente. Ademais, nos três primeiros municípios, mais de 20% das mudanças tiveram como motivação a aquisição de moradia.

Em 2015, o déficit habitacional no DF foi estimado em 132.903 domicílios. Entre 2007 e 2015 houve uma tendência contrária à média do Brasil: enquanto o país registrou diminuição do déficit, no DF aumentou. O mesmo aconteceu na relação entre o déficit habitacional e os domicílios vagos: no Brasil desde 2011 a quantidade de domicílios desocupados é maior que o déficit. Ao contrário, no DF, tem sido constante que o déficit seja maior que o número de domicílios vagos. Tanto no Brasil como no DF, o ônus excessivo do aluguel, desde 2011, disparou como o principal componente do déficit habitacional; no DF em 2015, este item representava 65,6% do total – no Brasil era de 49,9%.

O situação da metrópole brasiliense não é diferente do que acontece em outros lugares do mundo onde o aumento dos preços da moradia provoca a expulsão dos mais pobres e o rompimento das redes socioafetivas dos bairros. É neste sentido que a gentrificação se insere na discussão sobre direito à cidade, à medida que as transformações urbanas carregam disputas pelo espaço e pela moradia bem localizada na cidade.

Em diversas cidades ao redor do mundo, medidas de mitigação estão sendo aplicadas para frear o avanço da gentrificação nos bairros, como uma tentativa de assegurar um mínimo de oferta de moradia popular nos centros das metrópoles. Alguns exemplos são: a prefeitura de New York, que aplica políticas de controle dos alugueis, tanto dos preços de oferta como dos reajustes, aumentando a segurança e a estabilidade dos inquilinos; Paris, que reservou 8 mil moradias subsidiadas e delimitou áreas centrais com direito de preempção (quando a prefeitura tem preferência de compra de um imóvel) para aumentar as opções de alugueis; Barcelona, que criou um parque público de habitação social para aluguel e moradia transitória, ademais de aluguéis protegidos com a prefeitura como fiadora e a entrega de edifícios em comodatos para implementação de um modelo de comunidade ou co-moradia; e Londres, que lançou uma nova política de moradia accessível, estabelecendo uma cota de 35% de habitação social em qualquer projeto que receba subsídio público, ademais de fomentar as community land trust cooperativas de compra e construção de moradias para grupos organizados.

Outras medidas de mitigação são: a taxação de projetos que gerem o deslocamento da população, a recuperação da valorização do solo provocada pela localização de infraestruturas publicas, a penalização de lotes mantidos vazios para especulação, o fortalecimento das cooperativas de créditos e construção de habitação, o fomento da assistência técnica para construção de moradia, a construção de habitação de interesse social bem localizada, e a melhor distribuição da localização dos bens públicos pelos bairros.

Diversas medidas podem ser implementadas para mitigar a gentrificação, a maioria delas já consideras no Brasil pelo Estatuto das Cidades, porém pouco implementadas pelos governos locais. Para deter a gentrificação é necessário que a comunidade esteja organizada contra políticas urbanas elitistas ou projetos que desconsiderem suas necessidades. Ademais, são necessárias medidas estruturais, que interfiram nos processos de acumulação a fim de mudar a visão neoliberal da cidade.

Para finalizar, ainda hoje, tanto o conceito de gentrificação como o de direito à cidade continuam sendo fundamentais para ativistas de movimentos sociais, comunidades locais e acadêmicos como ideias orientadoras de diferentes lutas contra as injustiças espaciais, pelo direito à moradia digna, à democracia, e principalmente pelo direito de imaginar e transformar as cidades segundo os anseios das pessoas.

Fonte dos dados:

– CODEPLAN. Pesquisa Metropolitana por Amostra de Domicílios – PMAD. 2015, 2017.
– IPEA. Mercado Imobiliário e Política Urbano no Distrito Federal. 2015.
– PNUD-ONU. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. 2013.
– FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. 2015.

Matías Ocaranza Pacheco

Arquiteto pela Universidad de Chile e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é doutorando no PPG-FAU/UnB e participa da Agenda Popular do Território, do BrCidades DF e do Research Committe 21, redes socio-técnicas que promovem um desenvolvimento urbano mais justo e democrático para as cidades.

Com o objetivo de pensar alternativas aos problemas que afligem a população, o projeto 30 Dias Pelo Direito à Cidade busca formar um mosaico de visões dos mais diversos personagens que vivem, constroem e projetam a metrópole brasiliense.

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